quarta-feira, 30 de abril de 2014

Entrevista | Marcelo Araújo

"São as diferenças que nos valorizam e enriquecem"

Quem nunca passou por algum constrangimento na época da escola? Eu passei. Por causa do nome exótico, os apelidos pipocavam. E, por ser tímida, raramente revidava, me fechando ainda mais. Isso forjou a minha personalidade: tornei-me uma pessoa bastante reservada, discreta, e absolutamente incapaz de humilhações gratuitas.
Em seu novo livro, A testinha de Gabá, o escritor Marcelo Araújo fala justamente sobre o bullying, essa forma de violência, física ou moral, que pode ocorrer em qualquer ambiente, mas mais comumente no escolar. A obra é a primeira do autor destinada ao público infantil. Segundo ele, escrever para crianças "sempre foi um sonho".
A mensagem de A testinha de Gabá, de acordo com Araújo, é a de que é possível enfrentar e superar o bullying, inclusive revertendo o problema para algo positivo. "Quis mostrar que arte e educação podem ser instrumentos para combater problemas como a intolerância em relação às nossas diferenças", diz. 
Além do texto, ele assina todas as ilustrações. "Como não dispunha de técnicas de desenho, fui ilustrando a história na marra. Deu um trabalhão, mas fiquei feliz com o resultado", conta.
Marcelo Araújo – que também é autor de Não Abra – Contos de Terror (2009), Pedaço Malpassado (2010) e A maldição de Fio Vilela (2012) – falou com exclusividade ao Arquipélago da memória. Confira!

A testinha de Gabá é diferente de seus títulos anteriores, que pertencem ao universo do suspense e do terror. O que te motivou a realizar essa mudança?
Quando fiz a divulgação dos meus livros anteriores, sempre deixei claro que não queria me prender ao universo do terror. O primeiro livro que concluí, há quase uma década, ainda inédito, nada tem a ver com essa temática. Por uma série de fatos relacionados ao meu processo criativo e produtivo, publiquei três títulos de horror em sequência. Não foi um acaso, claro. Eu adoro literatura fantástica, já tenho alguns livros prontos ou sendo realizados nesse campo, que pretendo lançar em breve. Jamais deixarei de escrever sobre terror. Só não quero me prender a apenas um gênero.

Como surgiu A testinha de Gabá?
A testinha de Gabá surgiu há cerca de dois anos, enquanto finalizava meu terceiro livro, A maldição de Fio Vilela. Desde criança, sempre tive relação com desenho e artes visuais, ainda que não tenha feito cursos e me profissionalizado nisso. Também mantenho um laço informal com a música. Nunca tive carreira nessa área e pouco entendo de teoria musical, no entanto, sempre gostei de tocar e compor. Tinha escrito uma canção infantil chamada Testinha, que cantava para os meus sobrinhos. Peguei essa letra e comecei a me inspirar nuns desenhos. A partir daí, surgiu um enredo, envolvendo o bullying. Confesso que tive coragem para tocar esse projeto, pois como não dispunha de técnicas de desenho, fui ilustrando a história na marra. Deu um trabalhão, mas fiquei feliz com o resultado. Mostrei para algumas pessoas, como o Tagore Alegria, da Thesaurus, editora que publica meus livros, para sondar se aquele material tinha qualidade. As respostas foram positivas e me incentivaram a transformar esse trabalho em minha quarta obra literária.

Por que escrever sobre bullying? De onde surgiu a ideia?
Não foi algo que eu tenha planejado. A temática veio à tona justamente por conta desse detalhe da anatomia do personagem, o garoto Gabá, que tem uma testa grande e, por causa disso, sofre com uma brincadeira dos colegas na escola. Não apenas retrato o bullying, como procuro mostrar uma situação para superá-lo. No caso, o menino cria uma canção e canta para os colegas. O resultado é que a turma gosta e acaba ficando amiga do garoto. Com isso, o bullying fica para trás. Quando Gabá chega para apresentar a canção à turma, de certa forma, ele já está mais tranquilo, pois seus pais lhe mostraram que ele possui qualidades e que não deve ligar para a piada. Também procuro valorizar o papel da escola nesse cenário. A professora repreende os alunos quando eles gozam do protagonista e a aula de artes abre caminho para o desfecho "anti-bullying". Quis mostrar que arte e educação podem ser instrumentos para combater problemas como a intolerância em relação às nossas diferenças. 

O personagem Gabá é totalmente fruto da sua criatividade ou é inspirado em alguém que conhece?
Posso dizer que é fruto da minha criatividade. Agora, o subconsciente é forte. Certamente deve ter traços de pessoas que eu conheço. No livro, como sempre faço, há personagens com inspiração em amigos, familiares e conhecidos. Gosto de unir elementos da realidade para compor minhas criações. É uma atividade bem interessante. Pego elementos reais, misturo com a ficção e ideias próprias, jogo tudo em um "caldeirão" e sai algo novo.

Você sofreu bullying ou preconceito em alguma fase da sua vida? Se sim, como lidou com a experiência?
Acho que a maioria das crianças já sofreu ou sofre algum tipo de bullying. Comigo não poderia ser diferente. Lembro que na escola, no ensino fundamental e médio, era comum garotos mais fortes e maiores fazerem brincadeiras com os mais fracos e menores, algumas até com certa dose de agressividade e violência. Lembro que existia o tal do "corredor polonês", onde ficavam uns meninos formando um túnel e você tinha que passar no meio levando porrada. Parece coisa de nazista, mas quando se para e pensa que se trata de uma brincadeira realizada por crianças ou adolescentes, é de cair o queixo. Muitas vezes, ficava magoado com essas brincadeiras, mas acho que tinha um Gabá dentro de mim, me mostrando que as minhas diferenças eram meus pontos fortes e não defeitos. 

Como acredita que professores podem trabalhar para evitar a ocorrência de bullying no ambiente escolar? A literatura é um "caminho"?
Acho que combater esse problema envolve não apenas os professores, mas diretores e demais profissionais das escolas, o poder público e, certamente, os pais. Acho que hoje o bullying já é encarado como problema. Admitir uma situação errada não é o suficiente para acabar com ela, porém é melhor que escondê-la. Lembro que, na minha época de escola, o bullying era, em geral, admitido e tolerado, até mesmo por professores, diretores e pelos próprios pais. Muitas vezes, se você reclamava por sofrer algum tipo de brincadeira, constrangimento ou mesmo violência, as pessoas o taxavam de frouxo. E ai de você se fosse reclamar com o professor. Virava delator e corria o risco de apanhar na saída da escola. O sistema educacional era conivente com a situação, talvez por considerá-la normal e como parte da formação das pessoas. Foi assim também com os trotes nas universidades, que não deixam de ser bullying. Barbaridades como raspar a cabeça das pessoas, pintar o corpo delas com tinta eram consideradas normais. Até hoje, de vez em quando, um trote causa a morte de algum aluno. No caso do bullying nas escolas, foi preciso haver o Massacre de Realengo, no Rio de Janeiro, para se começar a abrir o olho para a questão, pois o jovem que assassinou aqueles doze adolescentes havia sofrido bullying.

Qual acredita ser o papel da família nessa situação?
Dialogar é a melhor saída. Eu não tenho filhos, mas acredito que o caminho seja observar sempre se há algo de errado com a criança ou jovem. E caso exista um problema, é preciso tentar entender para ajudar. No meu livro, os pais do personagem Gabá mostram a ele que não deve se incomodar com as brincadeiras bobas dos colegas e que ele é um garoto inteligente, capaz de superar o problema. E a família, penso, tem que recorrer aos professores e até mesmo às autoridades e à justiça, caso haja dificuldade em solucionar o assunto.

Como avalia a forma com que a sociedade contemporânea trata a questão das diferenças, sejam sociais, econômicas, sexuais etc.?
Melhorou muito nos últimos anos, mas ainda estamos em um patamar atrasado. Aceitar principalmente as diferenças sexuais constitui um grande desafio, em uma sociedade conservadora e pouco tolerante como a nossa. Custa ainda às pessoas entenderem que são as diferenças que nos valorizam e enriquecem. Se não aceitarmos as diferenças, jamais conseguiremos viver em coletividade.

Acredita que o Brasil seja um país preconceituoso?
O Brasil ainda vive esse mito de democracia racial, de país onde não há preconceito. Conversa! No Brasil presenciamos desde preconceitos dissimulados, com um racismo e uma homofobia disfarçados, até ações violentas, como as de grupos de skinheads. Movidos pela ignorância e fúria, contam com a complacência da sociedade, que muitas vezes vê de forma natural esse tipo de agressão. Lembro que há alguns anos um grupo de jovens de classe alta da zona sul do Rio espancou uma mulher que estava no ponto de ônibus. Tão chocante quanto o ato covarde foi eles declararem que haviam confundido a vítima, uma empregada doméstica, com uma prostituta. Quer dizer que se fosse uma prostituta eles poderiam espancá-la? E os pais ainda vieram depois dizer que se tratava de "rapazes de família", que a justiça não poderia condená-los, pois iria estragar a vida daqueles "pit boys".

Você acha que a questão do bullying tem o espaço que deveria ter na literatura nacional ou ainda carece de autores que tratem do tema?
Difícil dizer se esse tema merece espaço ou não. Acho que não é função do escritor colocar problemáticas sociais em seu trabalho. Ele pode optar por isso, sem ser obrigado. Escritor tem que criar, imaginar, colocar suas ideias no papel, sejam quais forem. Essa ideia de que arte tem de ser engajada me cheira a esse povo esquerdista que gosta de contaminar tudo com política. Mas eu até acho que esse tema tem espaço, sim, em nossa literatura. Lembremos de O Ateneu, de Raul Pompeia, livro publicado em 1888 que já tratava do bullying. No caso, o de um garoto pobre em um colégio interno que é discriminado pelos colegas e professores por conta de sua situação social.

Neste novo livro, você também assina as ilustrações. Conte-nos como foi essa experiência.
Foi fantástica. O resultado me surpreendeu por ter feito, conforme afirmei, na raça. Deu muito trabalho. Os traços são bem simples, no entanto, os comentários que ouvi me empolgaram. Disseram que os desenhos ficaram como se tivessem sido feitos por uma criança, o que considerei o máximo. Também comentaram que o traço ficou meio sujo, na linha de cartunistas de São Paulo que adoro e fizeram minha cabeça, como Glauco e Angeli.

Pensa em escrever mais livros destinados ao público infanto-juvenil?
Com certeza. Já estou fazendo os primeiros esboços para projetos futuros, nos quais vou criar o texto e as ilustrações. Sempre foi um sonho escrever para o público infantil. Um dos próximos títulos deve se chamar Badu do Bolo. Vai contar a história de uma moça que cozinha bolos deliciosos.

O que você lia na sua infância e juventude? O que recomenda para os meninos e meninas que vão ler A testinha de Gabá?
Eu tive muita influência de Monteiro Lobato, passando pelas fábulas de Esopo, os contos de fadas de Hans Christian Andersen e as histórias dos Irmãos Grimm. Esses autores, na verdade, desenvolveram um trabalho com tal qualidade que transcende o universo infantil e pode ser lido com a mesma empolgação por pessoas das mais diversas idades. Quanto ao recado para os meninos e meninas: leiam sempre. Leitura é fundamental para abrir a cabeça e nos levar a novos mundos.

E qual a mensagem que deixa para aqueles que sofrem bullying?
As brincadeiras idiotas hão de ficar para trás, porque você é muito maior do que elas. Cabeça erguida sempre!